Você foi enganado sobre o que é ‘Entrega de Valor’, o conceito foi deturpado

O Efeito NEGATIVO da Entrega de Valor Mal Definida

Já se deparou com um projeto que parece nunca sair do lugar? Cada semana traz novas demandas, o backlog cresce, mas nada parece realmente ser finalizado? Isso é mais comum do que parece, e um dos grandes vilões por trás dessa situação é a falta de clareza sobre o que constitui uma entrega de valor.

Nas últimas mentorias e treinamentos, tenho percebido um padrão preocupante em muitas empresas: o desalinhamento em torno dos itens de trabalho e a maneira como eles são definidos. Projetos e iniciativas que se estendem por meses, equipes que não falam a mesma língua, e gestores frustrados com a velocidade de entrega. Mas a verdadeira causa desse problema pode estar na forma como os itens de trabalho são estruturados e na falta de uma visão clara sobre como eles trafegam entre os níveis da organização.

Você já pensou que talvez sua equipe esteja tentando comparar maçãs com bananas? Quando cada time ou área da empresa define “entrega de valor” de maneira diferente, o que você tem é um caos semântico que gera ciclos de entrega intermináveis e problemas graves na gestão de dependências.

Se sua empresa está enfrentando esses desafios, está na hora de revisitar como os itens de trabalho estão sendo definidos e como eles se relacionam com a estratégia da organização. É aqui que entra o conceito do Flight Levels e a importância de estruturar o trabalho em diferentes níveis, garantindo alinhamento, clareza e, principalmente, previsibilidade nas entregas.

As Duas Principais Falácias na Definição de Itens de Trabalho

Durante uma das minhas mentorias, um cliente me trouxe uma queixa clássica:

“O ritmo de entrega da equipe está muito ruim. Parece que nada sai do lugar!”

Fomos investigar a fundo e descobrimos o problema. Eles estavam usando User Stories tão grandes que levavam três sprints para serem finalizadas. TRÊS SPRINTS!

Quando perguntei:

“Por que não quebramos essas histórias em itens menores para acelerar?”,
a resposta foi a de sempre:
“Ah, o cliente quer tudo isso de uma vez. Ele disse que se não vier tudo, ele não quer nada.”

Esse tipo de pensamento esconde duas falácias que vejo se repetirem em muitas empresas:

⚠️ Falácia 1: “Precisamos entregar tudo o que o cliente quer de uma vez.”

É comum pensar que o cliente só ficará satisfeito se receber um pacote completo de funcionalidades. No entanto, isso geralmente leva a itens de trabalho gigantescos, que são impossíveis de acompanhar e difíceis de medir. O cliente quer ver progresso e valor sendo gerado continuamente. Ao organizar o trabalho em entregas menores, incrementais e iterativas, você consegue mostrar evolução e garantir consistência na entrega.

⚠️ Falácia 2: “Somente o que entregamos ao cliente tem valor.”

Outro erro é achar que só o resultado final importa. Existem diferentes tipos de valor: técnico, de redução de risco, de aprendizado e de validação. Mesmo que uma entrega não gere valor imediato para o cliente, ela pode ser fundamental para garantir que o valor final seja entregue com maior qualidade e previsibilidade.

Itens menores que geram diferentes tipos de valor facilitam a gestão das dependências e ajudam a manter o fluxo de trabalho contínuo e eficiente.

Ahh Caco, mas no CONCEITO de INVEST da história tem que ter valor para o cliente!

Calma…

Fui atrás desse conceito na origem do criador que foi Bill Wake (Willian C. Wake), no artigo "INVEST in Good Stories, and SMART Tasks" em 2003 e também autor do livro "Extreme Programming Explored" de 2000 e lá no artigo Bill Wake trás:

Valioso
Uma história precisa ser valiosa. Mas não estamos falando de valor para qualquer pessoa; ela precisa ser valiosa para o cliente. Desenvolvedores podem ter preocupações legítimas, mas elas devem ser enquadradas de uma forma que o cliente as perceba como importantes.

Esse ponto é especialmente crítico quando dividimos histórias. Pense em uma história completa como um bolo de várias camadas, como uma camada de rede, uma camada de persistência, uma camada de lógica e uma camada de apresentação. Quando dividimos uma história, estamos servindo apenas uma parte desse bolo. Queremos entregar ao cliente a essência do bolo todo, e a melhor forma de fazer isso é fatiá-lo verticalmente através de todas as camadas. Desenvolvedores costumam ter a inclinação de trabalhar em apenas uma camada por vez (e fazer isso da forma “correta”); mas uma camada de banco de dados completa, por exemplo, tem pouco valor para o cliente se não houver uma camada de apresentação.

Fazer com que cada fatia seja valiosa para o cliente reforça a abordagem do XP de ‘pagar conforme o uso’ em relação à infraestrutura.— Bill Wake, criador do conceito de INVEST.

Ou seja… o conceito de valioso foi deturpado ao longo do tempo e você pode ter sido enganado ou entendeu errado esse tempo todo.

O conceito de valioso não deve ser interpretado APENAS como a necessidade de entregar um valor completo e imediato para o cliente final.

Uma história pode sim ser valiosa ao contribuir de diferentes formas, seja por meio de aprendizado, validação técnica ou até mesmo mitigação de riscos. A questão é como comunicar esse valor de forma que o cliente entenda a importância de cada fatia.

Quando falamos sobre entregar “o bolo todo”, é natural que muitos entendam que isso significa finalizar todas as camadas e funcionalidades de uma vez. Mas o que Bill Wake sugere é que precisamos fatiar o bolo verticalmente, entregando partes do valor completo. Não precisamos entregar todo o back-end de um sistema antes de iniciar o front-end.

Pelo contrário, podemos dividir a funcionalidade em incrementos menores que trafeguem pelas camadas de forma coesa, entregando o valor essencial que possa ser percebido e validado pelo cliente.

Isso alinha perfeitamente com o que discutimos nas falácias. Focar apenas no valor de negócio para o cliente pode levar a histórias enormes e difíceis de gerenciar, com múltiplas dependências que comprometem a previsibilidade e a autonomia das equipes.

No entanto, se dividirmos as histórias de forma que cada uma seja pequena, independente e possa ser testada e validada em um contexto maior, conseguimos manter o fluxo de trabalho mais eficiente e entregar valor continuamente.

Aplicar esse conceito no contexto dos diferentes níveis de trabalho que discutimos (projetos, épicos e itens a nível de equipe) ajuda a garantir que cada entrega, por menor que seja, ainda sim contribua para o valor final que desejamos entregar ao cliente.

Isso é fundamental para garantir previsibilidade, controle e uma comunicação clara sobre o progresso das iniciativas estratégicas.

A Solução: Flight Levels e a Definição Clara dos Itens de Trabalho

O conceito de Flight Levels, desenvolvido por Klaus Leopold, busca estruturar o trabalho em diferentes níveis para garantir alinhamento entre estratégia e execução. A ideia central é dividir o trabalho em níveis e garantir que todos saibam como os itens trafegam entre esses níveis, alinhando expectativas e resultados em cada camada da organização.

Dentro do Flight Levels, é essencial diferenciar os tipos de itens de trabalho (como projetos, iniciativas, investimentos) dos itens de trabalho que são ações ou entregas específicas realizadas por uma equipe. Isso evita confusões de terminologia e facilita a comunicação entre os níveis hierárquicos e as equipes de execução.

Vamos explorar como esses níveis se aplicam na prática:

Níveis de Trabalho Relacionados ao Flight Levels

Com base na minha experiência prática na gestão em escala, recomendo dividir os tipos de itens de trabalho em três níveis principais: projetos/iniciativas/investimentos, épicos/entregas de valor e itens de trabalho no nível de execução. Essa estrutura ajuda a garantir clareza entre os níveis e melhora a previsibilidade na gestão.

Nível Estratégico: Projeto, Iniciativa ou Investimento

Esse é o nível mais alto, onde lidamos com itens de trabalho que chamamos de projeto, iniciativa ou investimento. Eles estão diretamente relacionados a um objetivo estratégico ou a um OKR (Objetivo e Resultado-Chave) e geralmente possuem um horizonte de tempo maior, como um trimestre ou até mais, dependendo do escopo e complexidade.

Exemplo Prático: Um projeto para habilitar a funcionalidade de faturamento via cartão de crédito na plataforma de e-commerce. Esse projeto é um container maior, que pode incluir diversas entregas ao longo do trimestre para habilitar a funcionalidade por completo. Pode ser uma iniciativa que envolve diversas áreas, como engenharia, produto e marketing, cada uma contribuindo com entregas menores.

Esses projetos funcionam como “guarda-chuvas” que agrupam várias entregas de valor (épicos) ao longo do tempo. Dessa forma, é possível acompanhar tanto o investimento alocado quanto o progresso e o impacto estratégico que esse projeto está gerando para a organização.

Nível de Entregas de Valor: Épicos

No segundo nível, temos as entregas de valor, que são chamadas de épicos. Cada épico deve estar conectado ao objetivo estratégico e gerar valor de negócio ou valor percebido pelo cliente. É um container maior que agrupa itens menores e mais manejáveis, permitindo medir o progresso com mais clareza.

Exemplo Prático: Dentro do projeto de habilitar a funcionalidade de faturamento via cartão de crédito, um épico pode ser “Implementar pagamento recorrente para bandeiras de cartão específicas”. Esse épico, por sua vez, pode ter outros itens de trabalho que vão sendo concluídos para agregar valor ao cliente. A conclusão de um épico marca um avanço significativo dentro do projeto, gerando resultados tangíveis e mensuráveis.

Nível de Execução: Itens de Trabalho a Nível de Equipe

No terceiro nível, estão os itens de trabalho a nível de equipe. Aqui, o foco é a execução prática das entregas, onde a equipe tem autonomia para quebrar os itens conforme a maturidade e as capacidades do time. O objetivo é entregar um incremento funcional que pode ser testado de forma isolada e até colocado em produção, mas que, sozinho, não necessariamente entrega valor de negócio. É importante que esses itens sejam definidos de forma a permitir uma entrega completa e testável.

Exemplo Prático: Para o épico “Implementar pagamento recorrente para bandeiras de cartão específicas”, um item de trabalho no nível de execução pode ser “Desenvolver a API de integração com a adquirente de pagamento”. Esse item é uma entrega funcional completa, que pode ser colocada em produção e validada isoladamente, mas que, sozinho, não gera valor de negócio. Outro item de trabalho poderia ser “Desenvolver o processo de validação e armazenamento de informações de cobrança”. Cada um desses itens são entregas completas e testáveis, que contribuem para o épico maior.

O nível de maturidade da equipe influencia muito como esses itens de trabalho são definidos. Em equipes mais imaturas, os itens podem ser muito mais fragmentados, com entregas voltadas a tarefas isoladas, como “criar testes” ou “fazer a integração técnica”. Já em equipes mais maduras, é possível ver itens de trabalho definidos a partir de cenários de uso, que são incrementos funcionais mais coesos e alinhados com a visão de valor.

Quanto maior a maturidade da equipe, mais ela consegue dividir o trabalho em partes que façam sentido do ponto de vista funcional. Por exemplo, ao invés de criar um item para cada passo técnico (como testar a API ou validar um endpoint), uma equipe madura pode ter itens como “Desenvolver o suporte a pagamento recorrente para bandeira X” ou “Implementar suporte a falhas de comunicação com a adquirente”, que são entregas isoladas e testáveis dentro do contexto do épico maior.

Definindo Bem os Itens de Trabalho: A Base de Uma Gestão Eficiente em Escala

Se sua empresa está enfrentando ciclos longos de entrega ou dificuldades para gerenciar dependências entre equipes, o problema pode estar na falta de clareza sobre como os tipos de itens de trabalho trafegam entre os níveis. Isso gera desalinhamento e discussões improdutivas sobre prioridades e dificulta acompanhar o progresso e medir resultados.

Um dos pilares do Flight Levels é garantir que todos na organização tenham uma estrutura comum do que são os itens que trafegam entre os níveis. Dessa forma, um projeto/iniciativa/investimento pode ser acompanhado de forma clara, agrupando épicos que geram valor, e cada épico, por sua vez, é composto por itens menores que facilitam a execução do dia a dia.

Ao definir claramente cada nível, você cria um ambiente onde é possível medir impacto e prever resultados de forma mais assertiva. Equipes maduras conseguem trabalhar com entregas mais funcionais e menos fragmentadas, garantindo previsibilidade e alinhamento com os objetivos estratégicos.

Quando os itens de trabalho não estão claramente definidos e categorizados, as empresas tendem a sofrer com ciclos de entrega longos e dificuldades na priorização e no gerenciamento de dependências. Mas, ao estruturar corretamente cada nível, você melhora a comunicação, reduz o tempo de entrega e torna a gestão em escala muito mais fluida.

A Clareza nos Itens de Trabalho como Alavanca para gestão de portfólio mais eficiente e previsível

Quando você estrutura corretamente os tipos de itens de trabalho nos diferentes níveis — projetos/iniciativas, épicos e itens a nível de equipe — , você não só melhora a comunicação e a gestão de dependências, como também cria a base para uma gestão de portfólio mais eficiente e previsível.

É a partir dessa organização que você consegue estabelecer métricas mais confiáveis para cada nível, permitindo acompanhar o progresso e medir o impacto das entregas de forma mais assertiva.

Para líderes de tecnologia e produto, isso se traduz na possibilidade de medir a eficiência das equipes com métricas de fluxo claras e criar previsões mais robustas, auxiliando na melhoria contínua das estimativas e no aumento da capacidade de entrega.

Essa clareza também dá espaço para as equipes atuarem com mais autonomia e se organizarem de acordo com suas maturidades, o que acelera a entrega de valor e aumenta o engajamento no processo.

Já para gestores e executivos de tecnologia ou produto, a definição adequada dos tipos de itens de trabalho proporciona uma visão de portfólio mais coesa e estratégica.

Com projetos e iniciativas alinhados aos objetivos maiores da organização, fica mais fácil entender como cada entrega contribui para os OKRs e KPIs, possibilitando um controle mais efetivo sobre os investimentos e os resultados gerados.

A partir de métricas bem definidas, é possível ajustar o curso das ações com agilidade e garantir que as estratégias sejam executadas de forma mais previsível e eficiente.

Ao segmentar os tipos de itens e suas respectivas entregas, você estabelece uma conexão clara entre execução e impacto estratégico, o que é crucial para qualquer líder ou gestor que deseja visualizar como suas decisões e direcionamentos influenciam o crescimento da empresa. A capacidade de acompanhar o progresso das iniciativas estratégicas e de medir o impacto das ações se torna um diferencial competitivo, pois permite tomar decisões mais embasadas e promover mudanças que realmente movem os indicadores de sucesso do negócio.

Além disso, quando as equipes têm autonomia para quebrar seus itens de trabalho e direcionar suas entregas com base em cenários de uso reais, você fortalece a maturidade organizacional e facilita a comunicação entre as áreas. Isso cria um ambiente onde todos estão cientes de como as entregas se conectam com os objetivos de negócio, promovendo um alinhamento que vai desde a operação até a alta liderança.

Em resumo…

Organizar bem os tipos de itens de trabalho nos diferentes níveis é a chave para construir um fluxo de trabalho consistente e previsível, com métricas de impacto que alimentam tanto a execução quanto o acompanhamento estratégico. Isso permite que os OKRs e KPIs se movimentem com mais frequência e tenham um resultado mais constante, trazendo visibilidade, controle e, principalmente, um crescimento sustentável e alinhado aos objetivos da empresa.

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Ou se se você quer saber como aplicar esses conceitos na prática e transformar a forma como gerencia suas iniciativas e projetos por contra própria, conheça meu curso de Introdução ao Flight Levels. Nele, você aprenderá como estruturar seu fluxo de trabalho, definir métricas para cada nível e alinhar suas estratégias de forma mais eficiente e previsível.

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